terça-feira, 27 de agosto de 2019

Um pouco de gerúndio


Quando falamos ou escrevemos algo, devemos nos preocupar, em primeiro lugar...

...com a clareza;

...em segundo lugar, com a clareza;

...em terceiro lugar, com a clareza.

Por que a clareza é tão fundamental?

Porque, se não formos suficientemente claros, nossa comunicação não será eficaz por um motivo muito simples: não será entendida por nosso interlocutor.

E quem é o maior vilão da clareza? É o GERÚNDIO (forma verbal terminada emndo).

Suponham o seguinte diálogo:

O gerente estava ao telefone e andava de um lado para o outro...

Mas... a senhora pode resolver o meu problema?

Bem, senhor, vou estar telefonando para o inspetor de plantão...

Sim, mas quando será isso?

Bem, senhor, não se preocupe, pois vou estar providenciando...

Sim, entendi, mas será para hoje?

Bem, senhor, vou estar explicando a situação a ele e também vou estar passando um fax...

Mas...

Um "diálogo" assim não é nada produtivo.

Um dos maiores problemas de se usar o gerúndio é que ele não indica tempo, isto é, a idéia de tempo não está contida nessa forma verbal. Sabemos apenas que o gerúndio indica algo a meio caminho, isto é, algo que está se processando. Note-se que o traço durativo é inerente ao gerúndio.

Para ficar mais fácil, imagine a seguinte situação:

Você está atrasado para uma reunião importante. Alguém telefona para o seu celular para saber a que horas você chegará, ao que você responde:

"Estou chegando..."

Ao dizer "estou chegando", como o seu interlocutor saberá se você está a 5 minutos do escritório ou se acabou de sair de casa e ainda vai levar uns bons quarenta minutos para chegar?

Nãopara saber mesmo, afinal, o gerúndio não nos dá essa informação.

Como seria o diálogo entre o gerente que estava ao telefone e o seu interlocutor se o vício "vou + estar + –ndo" não houvesse sido usado?

Vejamos:

Mas... a senhora pode resolver o meu problema?

Bem, senhor, vou telefonar imediatamente para o inspetor de plantão e providenciar seus documentos ainda hoje.

Ótimo, obrigado.

Vou explicar a situação a ele e, em seguida, passarei um fax para solicitar seus documentos.

Muito obrigado.

Como vocês podem observar, o diálogo ficou simples, fácil e claro, sem "enrolações".

Vejam bem, quando as pessoas nos perguntam algo, elas esperam uma resposta clara, objetiva e, sobretudo, que responda ao que estão perguntando.

A expressão estarei providenciando, por exemplo, não é adequada porque relega a providência a um futuro incerto.

Devemos usar a expressão vou providenciar (reparem que o auxiliar está no presente, embora dê ideia de futuro), seguida de uma expressão indicadora de tempo para que o nosso interlocutor sinta que, realmente, faremos algo para atendê-lo.

Assim, devemos usar preferencialmente:

...vou providenciar hoje ainda;

...vou providenciar até às 16:00;

...vou providenciar amanhã pela manhã;

...vou providenciar, no máximo, em dois dias.

O uso apropriado de nossa língua também é uma forma de mostrar respeito e consideração pela pessoa do outro.

E na escrita?  Embora não seja o único, o mau uso do gerúndio é um dos maiores responsáveis pela falta de clareza dos textos em geral.

Pouca gente sabe (até porque, este assunto é pouco estudado), mas o gerúndio tem uma propriedade muito particular quando é usado junto de verbos que não sejam auxiliares.

Auxiliar é o verbo que contém os morfemas frasais (tempo, modo, número, pessoa):

Vejamos alguns exemplos:

...estou dormindo. (Auxiliar: presente do indicativo)

...estarei sonhando? (Auxiliar: futuro do presente)

...estava almoçando, quando a campainha tocou. (Auxiliar: pretérito imperfeito)

...fique estudando, enquanto ponho o jantar. (Auxiliar: presente do subjuntivo)

Reparem que o núcleo de sentido das expressões acima não está nos verbos auxiliares, mas sim nas formas verbais dormir, sonhar, almoçar e estudar, que estão sendo usadas no gerúndio.

Entretanto, o gerúndio é invariável, de modo que as idéias de tempo, modo, número e pessoa estão centradas justamente no verbo auxiliar.

O gerúndio deve ser usado, preferencialmente, ao lado dos verbos auxiliares (os principais auxiliares em Língua Portuguesa são os verbos ser e estar, masoutros, como ficar, parecer, continuar etc.).

Quando usado ao lado de verbos que não sejam auxiliares, o gerúndio designa simultaneidade de ações.

Quando usamos um verbo qualquer (que não seja auxiliar) seguido de gerúndio, estamos dizendo ao nosso interlocutor que as ações expressas por ambos (verbo + gerúndio) são simultâneas, isto é, ocorrem ao mesmo tempo.

O problema é que nem sempre queremos dizer que duas ações estão ocorrendo ao mesmo tempo!

Vejamos um exemplo:

O menino chegou cantando.

Na frase acima, nãoqualquer problema, pois uma pessoa pode chegar a algum lugar cantando, chorando, gritando... nada impede que tais ações ocorram ao mesmo tempo.

Mas:

Trouxe o almoço, entregando-o na recepção.

Temos uma frase que causa, no mínimo, um certo estranhamento, afinal ninguém pode, ao mesmo tempo, trazer e entregar alguma coisa; tais ações se processam em sequência, isto é, uma depois da outra; assim, a pessoa traz o almoço e entrega-o na recepção.

Para usarmos o gerúndio ao lado de outros verbos que não sejam os auxiliares, devemos estar seguros de que desejamos expressar ações simultâneas e que esse traço seja compatível com os dois verbos do par quando usados lado a lado, caso contrário, devemos empregar outras formas verbais seguidas de preposições ou outras expressões que tornem as nossas intenções claras para o nosso interlocutor.

Outro exemplo de frase que causa estranhamento à primeira vista:

Perdoando, desligamo-nos de quem nos ofendeu, ódio é vínculo que prende um ao outro, trazendo muitos infortúnios.

CARLOS, Antônio; CARVALHO, V. L. M. de. Reconciliação. São Paulo: Petit Editora, 1995, p. 31.

Não há simultaneidade entre prender e trazer; o ato de trazer é posterior; vejamos como ficaria a frase respeitada a sequência de ações no tempo:

Perdoando, desligamo-nos de quem nos ofendeu, ódio é vínculo que prende um ao outro e traz muitos infortúnios.

Uma última palavrinha.

Notem que costumo usar palavras como preferencialmente porque a língua não é uma ciência exata. Há contextos e contextos.

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